terça-feira, 8 de dezembro de 2020

BRUMAS DE VELUDO NAS ESTRELAS – Perturbação do espírito após a morte

 

BRUMAS DE VELUDO NAS ESTRELAS – Perturbação do espírito após a morte

Lívia Maria Gonzaga Monteiro

 

Juro pela minha alma que nem posso lembrar-me da sequência em que tudo aconteceu. Era meia-noite, mais ou menos (eu estava tão feliz que o tempo perdera sua importância), do dia 16 de julho de 2000, e eu me preparava para comemorar bodas de prata. Num instante, chegaram aos meus olhos a visão da certeza de que ele me amara todo aquele tempo. Não preciso contar – são inenarráveis – as alegrias que um amor tão grande fez-me viver. Eu me dava conta de que aquele amor não havia sido uma paixão comum: as flores e o belíssimo anel pousados na luxuosa caixa de veludo faziam-me perceber que ainda era ao mesmo tempo devoção e arrebatamento.

Recordei o abandono de sua vida à minha – penso até que sem merecimento de minha parte -, seus arroubos quase ingênuos, e senti um comecinho de desejo, meio sedento, meio distante, da saudade que se escondera na suavidade aveludada dos silêncios e dos carinhos. Recordei, inundada de alegria, o primeiro encontro, o fascínio dos olhos verdes e do corpo esguio, emoldurado pela cabeleira vasta e sedosa, da cor luminosa dos trigais maduros, o sorriso aberto e a alma em festa, e senti que a mim fora concedido muito mais que ao comum dos mortais.

Agradeci a Deus tanta felicidade, os filhos saudáveis e belos, o companheiro de todas as horas. Orei pelo menino que não tinha nascido e que esperei tanto. Vi o rosto corado, o esquife modesto. Agradecia, em júbilo, quando senti perpassar sobre meus ombros um como que sopro, um calafrio penetrante e, no vazio do quarto, vi, por instantes, uma sombra a esgueirar-se até a janela, cantando uma canção que não pude identificar.

Com a chegada dele de sua alegria – contato mágico que me transportava a um éden tido especial, esqueci o susto e a música. Saímos. O lugar escolhido não podia ser mais perfeito. O cardápio refinado, e os amigos, apenas um casal, davam o toque encantado ao dia tão especial.

Tudo transcorria muito bem, mas não sei por que aquela música da sombra continuava comigo. Parecia ter-se escondido em algum lugar do meu pensamento. Decidi: “vou retocar a maquiagem e ela vai embora”. Ainda dei uma olhada nos jardins exóticos, nas mesas cobertas de azul e ouro, nos castiçais e nos candelabros. A última imagem foi a dele. De seu sorriso e de sua amadurecida beleza.

Peguei o batom, abri-o com cuidado e procurei o espelhinho dentro da bolsa. Não gostei do que vi. Embora assustados, meus olhos pareciam distantes. Busquei o espelho grande do hall de entrada. Vi refletida uma imagem esguia, num belo vestido. Nenhum fio de cabelo fora do lugar. Pele acetinada e sorriso exibindo dentes perfeitos. Só os olhos pareciam cavos, distantes, sem brilho e quase sem cor. Disfarcei como pude as olheiras insistentes, as rugas que teimavam em brincar no canto dos olhos tristes.

Devo mencionar que nada falei ao meu marido sobre a visita que recebera. Cheguei a pensar que a sensação anormal que sentira era fruto de alusões ambíguas e fragmentárias a respeito de fantasmas, mortos que vêm avisar sobre alguma coisa ou pedir favores, ou ainda resultado de faculdades mediúnicas que havia estudado em “O Livro dos Médiuns”, de Allan Kardec, mas não me preocupara em desenvolver. Pensava – achava até com certa razão – que, se a grande maioria dos espíritos que se comunicavam, faziam-no para ser doutrinado, o melhor era educar os encarnados. Agora, na solidão sem fronteiras em que me encontrava, pensava que minta gente desencarnara sem conhecer nada do mundo de lá. E sofre muito. Sabia de casos de espíritos que levavam um tempo enorme para descobrir que estavam desencarnados. Quando voltasse para casa, começaria tudo de novo: o estudo da mediunidade e o desenvolvimento das minhas possíveis faculdades mediúnicas. Sempre tivera medo de ser mistificadora, isto é, de dar mensagens minhas com nomes de outros.

Nesse momento, nenhuma explicação poderia satisfazer a inquietude de minha alma. Um medo e uma sensação de desamparo tomaram conta de mim. De repente, vejo outra vez a forma diáfana, os véus a dançar sobre os ombros, trazendo a música, tão conhecida – parecia – e ainda assim impossível de ser identificada.

Saí em desabalada carreira, os cabelos em desalinho, a expressão de horror nas faces lívidas, e busquei o salão. Estaria enlouquecendo, ou aquele não era o mesmo salão que deixara minutos – seriam mesmo minutos – antes? Onde estava meu marido, onde estavam nossos amigos? Em vão procurei por todos os lados, fiz perguntas, aborreci os clientes, agora perfeitos estranhos, e nada. Tudo parecia diferente. Com encontrar aquele que se abandonara a mim, que dedicara toda sua vida à construção de minha felicidade? Tinha de encontra-lo. E como estariam meus filhos? As horas, que horas seriam, por que ninguém se preocupava em dar-me uma explicação? Andei a esmo, por um tempo eterno, sem rumo, em círculos, chegando sempre ao mesmo lugar, recordando a lição kafkiana do pobre Josef K, personagem maior do livro “O Processo”, que um dia, descobriu-se acusado de um crime que não cometera – por certo alguém o injuriara perante as autoridades, foi a sua conclusão – e perambulou por fóruns e tribunais, cartórios e delegacias, em busca do conteúdo da acusação que lhe fora imputada e, também em círculos, percorreu lugares de onde era afastado com frieza, sem qualquer explicação, até que, finalmente, foi condenado, sem saber o motivo que o levara às teias legais, num longo e enlouquecedor processo.

Não me lembrava de ter cometido qualquer delito legal. Só alguns de natureza moral. Vinham-me à mente algumas palavras ásperas, as negativas a pedidos de ajuda, as mentiras, a vaidade, o egoísmo e o orgulho, meu Deus, aquele aborto que fora obrigada a fazer, a curetagem, o remorso, o medo de ter provocado a morte do bebê, a porta fechada a outros filhos... A laqueadura... Estaria sendo castigada? Seria levada ao tribunal de minha consciência ou iria para o Umbral, quando desencarnasse? Queria mesmo era ir para Nosso Lar. Aprender a ser humilde como André Luiz, que era médico aqui na Terra e teve que fazer serviços de faxina lá.

Estaria tendo um pesadelo? Por que ninguém vinha me acordar? Por que ninguém escutava meus gritos? Por que ninguém parecia me ver?

Recordei com uma exatidão profunda todos os momentos importantes de minha vida: minha infância, meu primeiro vestido de festa, o bolo de aniversário de minha boneca, a doença e a morte de meus pais. Meus irmãos... Vi tudo e chorei até que as lágrimas transformassem-se em soluções secos e prolongados.

De repente, lembrei-me de orar. Sim, tinha aprendido que a oração acalma, permite a aproximação dos bons espíritos, e alguma coisa de bom tinha de acontecer comigo. Que luz diferente era aquela, baça, tornando difícil o exame dos lugares por onde passava? Gritei por Deus, Jesus, Nossa Senhora, meu anjo da guarda, Dr. Bezerra de Menezes, ah, esse ia me ajudar, pois era certo que já podia viver em mundos mais adiantados, mas preferira ficar na crosta terrestre para socorrer seus irmãos. Lembrei a mãe de Chico Xavier, meu Deus, quase esqueço o nome dela, dona Maria João de Deus, que ensinava os filhos a cantar não tenho problema, não tenho aflição, pois tenho Jesus no meu coração. Eu tinha problemas, estava aflita, com o coração em frangalhos, e decerto Jesus não ia caber ali. O jeito era apelas para outros espíritos.

Saí em desabalada carreira. Parei à beira de um riacho, acho que já estava escurecendo, examinei todas as barracas, os ranchos, as pessoas cantando, tocando violão, tomando cerveja, pescando, comendo churrasco.

Oh, surpresa e indignação! Ninguém parecia me ver. Que teria acontecido comigo? Teria ficado louca? Olha que doido é atrapalhado das ideias mesmo. Uma vez, li um livro do A J. Cronin, em que ele contava a história de um homem calmo, bonzinho, que estava tratando de sua loucura. Parecia tão bom que o médico, certa vez, vendo-o enfurecido em sua cela, atacando um enfermeiro, pensou que poderia acalmá-lo, pois jogavam juntos todos os dias, e ele parecia perfeitamente normal, mas só foi salvo de seu furioso ataque graças à ajuda de um funcionário que o vigiava. Pior: no outro dia, quando lhe perguntou por que atacara o enfermeiro, respondeu que era por que ele tinha maltratado sua irmã.

Daí em diante, Cronin evitou o paciente, que era filho único.

Pensamentos desencontrados, cansaço e preocupação tomaram conta do meu ser. Mais uma vez tentei orar. Ora, era frequentadora de centros espíritas, fazia palestras, dava passes, tinha de me controlar. Orei fervorosamente: como era possível que minha festa de comemoração de 25 anos de casada pudesse ter acabado assim? Que teria acontecido com o restaurante, com meu marido e meus amigos? Não me lembrava de nada.

Finalmente, exausta, caída, prostrada, ouço a canção que tanto me preocupara. Mas não vi ninguém. A sombra deslizante, seria ela? Só uma voz doce, maviosa, terna e inesquecível, ordenou:

Arranje uma condução para nossa irmã. Não podemos deixa-la aqui. Pode ser perigoso.

- Só está disponível um daqueles buses aéreos.

- Está bem, pode ir busca-lo.

Meu Deus, quem iria buscar o bus? Para onde iam levar-me? Eu queria ir para casa. Queria sentir a maciez da cama quentinha, o sabor da comida, tomar aquele banho gostoso e depois assistir à TV no meu aparelho de 60 polegadas.

Daí a pouco, chega um rapaz ainda bem jovem, vestido com uma roupa parecida com as usadas pelos jóqueis, nas competições de equitação, aproxima-se de mim, com todo o cuidado:

- Você pode esticar as pernas e entrar. Não é parecido com um Fórmula 1? E é bem ligeiro também.

Tentei entrar. O cockpit era diferente. Depois que estiquei as pernas, vi que o aparelho era parecido mesmo com um Fórmula 1, mas horizontal. Quando me acomodei, pareceu-me estar deitada num carro confortável.

O rapaz ligou o que poderia ser o motor e qual condor majestoso o aparelho singrou os ares em vertiginosa rapidez, atravessando abismos, deixando para trás campos cultivados, rios de águas transparentes, onde se viam peixes dourados brincando, castelos, construções de beleza incomparável... E eu ali sem fala, fruindo a amplidão sem fim. Estaríamos sobrevoando qual parte do Brasil? Ou dos Estados Unidos? As naves espaciais em nada se pareciam com o veículo que me conduzia pela noite adentro, beiradeando estrelas.

Preocupada, tentei entabular conversa. O moço parecia condoído de minha situação. De vez em quando, seu olhar pousava em mim, penetrante e compassivo. Minha nossa, ele não fala nada, será que estou sendo raptada por uma nave russa? O medo voltou com força redobrada. Era impossível estar ali sem que minha família fosse avisada.

Finalmente, meu coração serenou. Estávamos aproximando-nos de umas luzes, a princípio apenas fiapos, flocos finos, mas depois pude distinguir o que me pareceu ser uma bela metrópole, como o Rio de Janeiro, vista à noite, do alto de um avião.

Ouvi outra vez a canção da sombra. Agora, perfeitamente identificável. Os acordes penetraram os refolhos de meu ser. Uma tristeza imensa toldou-me as palavras e grossas lágrimas banharam minha solidão. Vi que havia muitas pessoas reunidas ao redor da música, então cantei também:

“... Viva Jesus, nosso Mestre e Senhor,

Viva Emmanuel, nosso Guia e Protetor,

Viva Kardec, o Codificador

Do Espiritismo, a Doutrina do amor...”

Não sei quanto tempo permaneci ali, mergulhada em minha dor, sem saber se voava, se estava parada, ouvindo os doces acordes entremeados de soluções. Não sei por quanto tempo orei. Acho que por uma eternidade, até que a sombra, meu anjo guardião – soube-o mais tarde -, tomou-me as mãos, olhou-me com gravidade e ternura e, diante de minha perplexidade, perguntou:

- Você quer ver o seu enterro, ou podemos seguir?

 

Conto vencedor do 10º concurso do

Círculo Literário Castro Alves / Editora Petit

 

Texto retirado do livro: “A luz dissipa as trevas”

de Paulo Daltro de Oliveira

Páginas 143 a 151



 

 

 

 

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