BRUMAS DE VELUDO NAS ESTRELAS – Perturbação do espírito após
a morte
Lívia Maria Gonzaga
Monteiro
Juro pela minha alma que nem
posso lembrar-me da sequência em que tudo aconteceu. Era meia-noite, mais ou
menos (eu estava tão feliz que o tempo perdera sua importância), do dia 16 de
julho de 2000, e eu me preparava para comemorar bodas de prata. Num instante,
chegaram aos meus olhos a visão da certeza de que ele me amara todo aquele
tempo. Não preciso contar – são inenarráveis – as alegrias que um amor tão
grande fez-me viver. Eu me dava conta de que aquele amor não havia sido uma
paixão comum: as flores e o belíssimo anel pousados na luxuosa caixa de veludo
faziam-me perceber que ainda era ao mesmo tempo devoção e arrebatamento.
Recordei o abandono de sua vida à
minha – penso até que sem merecimento de minha parte -, seus arroubos quase
ingênuos, e senti um comecinho de desejo, meio sedento, meio distante, da
saudade que se escondera na suavidade aveludada dos silêncios e dos carinhos.
Recordei, inundada de alegria, o primeiro encontro, o fascínio dos olhos verdes
e do corpo esguio, emoldurado pela cabeleira vasta e sedosa, da cor luminosa
dos trigais maduros, o sorriso aberto e a alma em festa, e senti que a mim fora
concedido muito mais que ao comum dos mortais.
Agradeci a Deus tanta felicidade,
os filhos saudáveis e belos, o companheiro de todas as horas. Orei pelo menino
que não tinha nascido e que esperei tanto. Vi o rosto corado, o esquife
modesto. Agradecia, em júbilo, quando senti perpassar sobre meus ombros um como
que sopro, um calafrio penetrante e, no vazio do quarto, vi, por instantes, uma
sombra a esgueirar-se até a janela, cantando uma canção que não pude
identificar.
Com a chegada dele de sua alegria
– contato mágico que me transportava a um éden tido especial, esqueci o susto e
a música. Saímos. O lugar escolhido não podia ser mais perfeito. O cardápio
refinado, e os amigos, apenas um casal, davam o toque encantado ao dia tão
especial.
Tudo transcorria muito bem, mas
não sei por que aquela música da sombra continuava comigo. Parecia ter-se
escondido em algum lugar do meu pensamento. Decidi: “vou retocar a maquiagem e
ela vai embora”. Ainda dei uma olhada nos jardins exóticos, nas mesas cobertas
de azul e ouro, nos castiçais e nos candelabros. A última imagem foi a dele. De
seu sorriso e de sua amadurecida beleza.
Peguei o batom, abri-o com cuidado
e procurei o espelhinho dentro da bolsa. Não gostei do que vi. Embora
assustados, meus olhos pareciam distantes. Busquei o espelho grande do hall de
entrada. Vi refletida uma imagem esguia, num belo vestido. Nenhum fio de cabelo
fora do lugar. Pele acetinada e sorriso exibindo dentes perfeitos. Só os olhos
pareciam cavos, distantes, sem brilho e quase sem cor. Disfarcei como pude as
olheiras insistentes, as rugas que teimavam em brincar no canto dos olhos
tristes.
Devo mencionar que nada falei ao meu marido sobre a visita
que recebera. Cheguei a pensar que a sensação anormal que sentira era fruto de
alusões ambíguas e fragmentárias a respeito de fantasmas, mortos que vêm avisar
sobre alguma coisa ou pedir favores, ou ainda resultado de faculdades mediúnicas
que havia estudado em “O Livro dos Médiuns”, de Allan Kardec, mas não me
preocupara em desenvolver. Pensava – achava até com certa razão – que, se a
grande maioria dos espíritos que se comunicavam, faziam-no para ser doutrinado,
o melhor era educar os encarnados. Agora, na solidão sem fronteiras em que me
encontrava, pensava que minta gente desencarnara sem conhecer nada do mundo de
lá. E sofre muito. Sabia de casos de espíritos que levavam um tempo enorme para
descobrir que estavam desencarnados. Quando voltasse para casa, começaria tudo
de novo: o estudo da mediunidade e o desenvolvimento das minhas possíveis
faculdades mediúnicas. Sempre tivera medo de ser mistificadora, isto é, de dar
mensagens minhas com nomes de outros.
Nesse momento, nenhuma explicação
poderia satisfazer a inquietude de minha alma. Um medo e uma sensação de
desamparo tomaram conta de mim. De repente, vejo outra vez a forma diáfana, os
véus a dançar sobre os ombros, trazendo a música, tão conhecida – parecia – e
ainda assim impossível de ser identificada.
Saí em desabalada carreira, os
cabelos em desalinho, a expressão de horror nas faces lívidas, e busquei o
salão. Estaria enlouquecendo, ou aquele não era o mesmo salão que deixara
minutos – seriam mesmo minutos – antes? Onde estava meu marido, onde estavam
nossos amigos? Em vão procurei por todos os lados, fiz perguntas, aborreci os
clientes, agora perfeitos estranhos, e nada. Tudo parecia diferente. Com
encontrar aquele que se abandonara a mim, que dedicara toda sua vida à construção
de minha felicidade? Tinha de encontra-lo. E como estariam meus filhos? As
horas, que horas seriam, por que ninguém se preocupava em dar-me uma
explicação? Andei a esmo, por um tempo eterno, sem rumo, em círculos, chegando
sempre ao mesmo lugar, recordando a lição kafkiana do pobre Josef K, personagem
maior do livro “O Processo”, que um dia, descobriu-se acusado de um crime que
não cometera – por certo alguém o injuriara perante as autoridades, foi a sua
conclusão – e perambulou por fóruns e tribunais, cartórios e delegacias, em
busca do conteúdo da acusação que lhe fora imputada e, também em círculos,
percorreu lugares de onde era afastado com frieza, sem qualquer explicação, até
que, finalmente, foi condenado, sem saber o motivo que o levara às teias legais,
num longo e enlouquecedor processo.
Não me lembrava de ter cometido
qualquer delito legal. Só alguns de natureza moral. Vinham-me à mente algumas
palavras ásperas, as negativas a pedidos de ajuda, as mentiras, a vaidade, o
egoísmo e o orgulho, meu Deus, aquele aborto que fora obrigada a fazer, a
curetagem, o remorso, o medo de ter provocado a morte do bebê, a porta fechada
a outros filhos... A laqueadura... Estaria sendo castigada? Seria levada ao
tribunal de minha consciência ou iria para o Umbral, quando desencarnasse?
Queria mesmo era ir para Nosso Lar. Aprender a ser humilde como André Luiz, que
era médico aqui na Terra e teve que fazer serviços de faxina lá.
Estaria tendo um pesadelo? Por
que ninguém vinha me acordar? Por que ninguém escutava meus gritos? Por que
ninguém parecia me ver?
Recordei com uma exatidão
profunda todos os momentos importantes de minha vida: minha infância, meu
primeiro vestido de festa, o bolo de aniversário de minha boneca, a doença e a
morte de meus pais. Meus irmãos... Vi tudo e chorei até que as lágrimas
transformassem-se em soluções secos e prolongados.
De repente, lembrei-me de orar.
Sim, tinha aprendido que a oração acalma, permite a aproximação dos bons
espíritos, e alguma coisa de bom tinha de acontecer comigo. Que luz diferente
era aquela, baça, tornando difícil o exame dos lugares por onde passava? Gritei
por Deus, Jesus, Nossa Senhora, meu anjo da guarda, Dr. Bezerra de Menezes, ah,
esse ia me ajudar, pois era certo que já podia viver em mundos mais adiantados,
mas preferira ficar na crosta terrestre para socorrer seus irmãos. Lembrei a
mãe de Chico Xavier, meu Deus, quase esqueço o nome dela, dona Maria João de
Deus, que ensinava os filhos a cantar não tenho problema, não tenho aflição, pois
tenho Jesus no meu coração. Eu tinha problemas, estava aflita, com o coração em
frangalhos, e decerto Jesus não ia caber ali. O jeito era apelas para outros
espíritos.
Saí em desabalada carreira. Parei
à beira de um riacho, acho que já estava escurecendo, examinei todas as barracas,
os ranchos, as pessoas cantando, tocando violão, tomando cerveja, pescando,
comendo churrasco.
Oh, surpresa e indignação!
Ninguém parecia me ver. Que teria acontecido comigo? Teria ficado louca? Olha
que doido é atrapalhado das ideias mesmo. Uma vez, li um livro do A J. Cronin,
em que ele contava a história de um homem calmo, bonzinho, que estava tratando
de sua loucura. Parecia tão bom que o médico, certa vez, vendo-o enfurecido em
sua cela, atacando um enfermeiro, pensou que poderia acalmá-lo, pois jogavam
juntos todos os dias, e ele parecia perfeitamente normal, mas só foi salvo de
seu furioso ataque graças à ajuda de um funcionário que o vigiava. Pior: no
outro dia, quando lhe perguntou por que atacara o enfermeiro, respondeu que era
por que ele tinha maltratado sua irmã.
Daí em diante, Cronin evitou o
paciente, que era filho único.
Pensamentos desencontrados,
cansaço e preocupação tomaram conta do meu ser. Mais uma vez tentei orar. Ora,
era frequentadora de centros espíritas, fazia palestras, dava passes, tinha de
me controlar. Orei fervorosamente: como era possível que minha festa de
comemoração de 25 anos de casada pudesse ter acabado assim? Que teria
acontecido com o restaurante, com meu marido e meus amigos? Não me lembrava de
nada.
Finalmente, exausta, caída,
prostrada, ouço a canção que tanto me preocupara. Mas não vi ninguém. A sombra
deslizante, seria ela? Só uma voz doce, maviosa, terna e inesquecível, ordenou:
Arranje uma condução para nossa irmã. Não podemos deixa-la
aqui. Pode ser perigoso.
- Só está disponível um daqueles buses aéreos.
- Está bem, pode ir busca-lo.
Meu Deus, quem iria buscar o bus?
Para onde iam levar-me? Eu queria ir para casa. Queria sentir a maciez da cama
quentinha, o sabor da comida, tomar aquele banho gostoso e depois assistir à TV
no meu aparelho de 60 polegadas.
Daí a pouco, chega um rapaz ainda
bem jovem, vestido com uma roupa parecida com as usadas pelos jóqueis, nas
competições de equitação, aproxima-se de mim, com todo o cuidado:
- Você pode esticar as pernas e entrar. Não é parecido com um Fórmula
1? E é bem ligeiro também.
Tentei entrar. O cockpit era
diferente. Depois que estiquei as pernas, vi que o aparelho era parecido mesmo
com um Fórmula 1, mas horizontal. Quando me acomodei, pareceu-me estar deitada
num carro confortável.
O rapaz ligou o que poderia ser o
motor e qual condor majestoso o aparelho singrou os ares em vertiginosa
rapidez, atravessando abismos, deixando para trás campos cultivados, rios de
águas transparentes, onde se viam peixes dourados brincando, castelos,
construções de beleza incomparável... E eu ali sem fala, fruindo a amplidão sem
fim. Estaríamos sobrevoando qual parte do Brasil? Ou dos Estados Unidos? As
naves espaciais em nada se pareciam com o veículo que me conduzia pela noite adentro,
beiradeando estrelas.
Preocupada, tentei entabular
conversa. O moço parecia condoído de minha situação. De vez em quando, seu
olhar pousava em mim, penetrante e compassivo. Minha nossa, ele não fala nada,
será que estou sendo raptada por uma nave russa? O medo voltou com força
redobrada. Era impossível estar ali sem que minha família fosse avisada.
Finalmente, meu coração serenou.
Estávamos aproximando-nos de umas luzes, a princípio apenas fiapos, flocos
finos, mas depois pude distinguir o que me pareceu ser uma bela metrópole, como
o Rio de Janeiro, vista à noite, do alto de um avião.
Ouvi outra vez a canção da
sombra. Agora, perfeitamente identificável. Os acordes penetraram os refolhos
de meu ser. Uma tristeza imensa toldou-me as palavras e grossas lágrimas
banharam minha solidão. Vi que havia muitas pessoas reunidas ao redor da
música, então cantei também:
“... Viva Jesus, nosso Mestre e Senhor,
Viva Emmanuel, nosso Guia e Protetor,
Viva Kardec, o Codificador
Do Espiritismo, a Doutrina do amor...”
Não sei quanto tempo permaneci
ali, mergulhada em minha dor, sem saber se voava, se estava parada, ouvindo os
doces acordes entremeados de soluções. Não sei por quanto tempo orei. Acho que
por uma eternidade, até que a sombra, meu anjo guardião – soube-o mais tarde -,
tomou-me as mãos, olhou-me com gravidade e ternura e, diante de minha
perplexidade, perguntou:
- Você quer ver o seu enterro, ou podemos seguir?
Conto vencedor do 10º concurso do
Círculo Literário Castro Alves / Editora
Petit
Texto retirado do
livro: “A luz dissipa as trevas”
de Paulo Daltro de
Oliveira
Páginas 143 a 151
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